O servidor fantasma de bermuda e chinelo: quase dois anos de fraude silenciosa em Ponta Grossa

Por Marcello Sampaio | Especial para a Tribuna da Cidade

Vestindo bermuda, chinelo e um sorriso discreto, um servidor público municipal de 56 anos se apresentava diariamente na sede da Secretaria Municipal da Fazenda de Ponta Grossa. Mas, ao contrário do que se esperava, sua “jornada de trabalho” durava apenas 90 segundos — tempo suficiente para registrar o ponto eletrônico, virar as costas e desaparecer do prédio. Essa rotina se repetiu por quase dois anos, entre agosto de 2023 e julho de 2025.

A denúncia, enviada pela própria administração municipal, desencadeou uma investigação conduzida pela Polícia Civil do Paraná. O caso, agora nas mãos do Ministério Público, escancara não apenas o ato isolado de um funcionário que se apropriou de recursos públicos sem trabalhar, mas também um sistema que falhou gravemente em seus mecanismos de controle.

O INÍCIO DA INVESTIGAÇÃO

O inquérito foi instaurado em junho de 2025, depois que funcionários da secretaria estranharam a ausência constante do servidor em reuniões, tarefas e projetos. Segundo apurou esta reportagem, o servidor ocupava cargo efetivo e era responsável por análises financeiras e emissão de pareceres internos, mas não entregava qualquer trabalho há meses.

“A gente se perguntava: ele ainda trabalha aqui?”, conta uma servidora que pediu anonimato. “Não participava de nada, nem respondia e-mails. Achamos que estivesse de licença ou aposentado.”

Com a suspeita instalada, a Prefeitura de Ponta Grossa realizou um levantamento interno e confirmou que, embora o ponto eletrônico estivesse sendo registrado todos os dias úteis, o servidor não permanecia no local além de um minuto e meio. Câmeras de segurança e relatos de colegas corroboraram a denúncia.

“BATIA PONTO E IA TOMAR CAFÉ NO CENTRO”

Moradores da região central de Ponta Grossa relataram à reportagem que viam o homem circulando pelas redondezas logo após o horário de entrada no serviço público.

“Ele batia ponto e vinha tomar café aqui no balcão quase todo dia. Brincava dizendo que o expediente dele era só marcar presença”, revelou um comerciante da rua Engenheiro Schamber.

O que parecia piada, na verdade, escondia um esquema silencioso de fraude administrativa. Durante 23 meses, o servidor recebeu salário integral, benefícios e vantagens sem cumprir a carga horária estabelecida nem apresentar qualquer produtividade.

A CONFISSÃO

O delegado Derick Moura Jorge, responsável pela investigação, confirmou que o servidor confessou os atos. Em depoimento, afirmou que, por “falta de motivação” e “clima insustentável no setor”, decidiu não permanecer no local após bater ponto.

“Ele alegou desgaste emocional e má gestão, mas nada disso justifica o recebimento de salário sem trabalhar. O crime é claro: inserção de dados falsos em sistema público para obtenção de vantagem indevida”, declarou o delegado.

A infração está prevista no artigo 313-A do Código Penal Brasileiro e prevê pena de 2 a 12 anos de reclusão, além de multa.

UMA REDE DE SILÊNCIO E CONIVÊNCIA?

O caso abriu um novo debate dentro da Prefeitura: como ninguém percebeu antes? Havia controle de produtividade? Por que o setor de recursos humanos não agiu?

“Tem muita gente que finge que trabalha e muitos que fazem vista grossa. Este caso é só a ponta do iceberg”, desabafa um outro servidor da própria Fazenda.

A reportagem apurou que há pelo menos quatro outras denúncias anônimas em análise, envolvendo servidores de diferentes pastas que estariam em situações semelhantes: batendo ponto sem cumprir expediente, burlando o sistema de banco de horas e apresentando laudos médicos irregulares para afastamentos prolongados.

O QUE DIZ A PREFEITURA

Em nota oficial, a Prefeitura de Ponta Grossa informou que “adotou todas as providências cabíveis no âmbito administrativo” assim que tomou conhecimento dos fatos. Foi instaurado processo disciplinar e proposta a demissão por justa causa do servidor, afastado de suas funções.

“A atual gestão reafirma seu compromisso com a legalidade, a moralidade e a transparência no serviço público. Não toleraremos desvios de conduta funcional”, conclui a nota.

POPULAÇÃO INDIGNADA

O caso repercutiu negativamente entre os moradores. Para muitos, a fraude é um reflexo de falta de fiscalização interna e de uma cultura permissiva no funcionalismo público.

“Enquanto uns dão o sangue nos hospitais e escolas, outros ganham para não fazer nada. É revoltante”, disse Márcia Oliveira, comerciante no bairro Nova Rússia.

“Se fosse um trabalhador comum, seria demitido no primeiro dia. No serviço público, parece que vale tudo”, reclamou José Adelmo, aposentado.

PRÓXIMOS PASSOS

Com o inquérito concluído, cabe agora ao Ministério Público do Paraná decidir se irá denunciar criminalmente o servidor. Caso condenado, ele pode perder o cargo público definitivamente e ser obrigado a restituir os valores recebidos indevidamente aos cofres municipais.

O caso reacendeu debates dentro da Câmara Municipal sobre a necessidade de implementar controle de produtividade, avaliação de desempenho e maior rigor na fiscalização do ponto eletrônico.

A cobertura continua na segunda matéria, com relatos inéditos de servidores, comerciantes e especialistas sobre o impacto da “cultura do faz de conta” no serviço público paranaense.

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